Resgatando Histórias: letra por letra
Petição da ex-escrava Domingas e seu filho José em nome de sua liberdade
Como primeira postagem de nossa série, "Resgatando Histórias: letra por letra", vemos o pedido realizado por uma ex-escravizada, Domingas, o qual deixa entrever que a vida das pessoas ex-escravizadas, especialmente das mulheres, não eram fáceis, como a historiografia vem demonstrando nos últimos anos. Não à toa, mesmo tendo em mãos uma carta de liberdade, Domingas teme pela sua liberdade e a de seu filho, José, uma vez que esse escrito poderia ser contestado tanto por herdeiros, como pelas autoridades em geral. Nesse caso, quais teriam sido as suas motivações para enviar uma petição ao Conselho Ultramarino? Teria, por acaso, sofrido alguma ameaça, ou não sentia segurança que aquela carta seria o suficiente para a proteger e assegurar sua liberdade? O que a motiva a ir tão longe a ponto de escrever a Lisboa? O fato é que seu pedido não é atendido, entendendo o Conselho que aquela carta de liberdade já valesse por si, sem necessitar de confirmação. No entanto, cabe-nos perguntar se assim a valia.
Leia abaixo a transcrição da petição:
f.1 S.or
Dizem Domingas e seu filho Joseph que sendo captivos de Rita Pereira da Assupção por lhe haverem sido legados por sua avó Barbosa da Assumpção os manumeteo a dita sua Senhora por cento e cinquenta mil reis em dinheiro, e uma negra do gentio de Guiné chamada Ignácia que lhe deu Antonio Pinheiro e Lemos, passando-lhe com assistência de seu Pai e por isso legado(?) administrador de seus bens as cartas incertas nos documentos juntos; e porque ainda que eles sejam suficientes para (ação?) de liberdade dos suplicantes querem estes que seja ainda mais forte e atendível sem que lhe possa em tempo algum arguir o mínimo defeito.
Pede a Vossa Majestade seja servido o mandar-lhes passar sua carta de confirmação suprindo a nulidade que talvez se poderia considerar por ser o manumitente menor de 25 anos ao tempo da manumissão.
ERM
[alto] Haja vista do Procurador da Fazenda. Lisboa 22 de Abril de 1758
[margem esq] Deve se excusar
Haja vista do Procurador da Coroa .Lisboa 9 de maio de 1758
A presente súplica não merece atenção porque por este modo se não deve prejudicar ao direito que pode competir à menor legataria.
[em anexo consta carta de liberdade]
Para saber mais sobre o tema:
SILVA, Luiz Geraldo. Africanos e afrodescendentes na América portuguesa: entre a escravidão e a liberdade. (Pernambuco, séculos XVI ao XIX). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018.
OLIVEIRA, Felipe Garcia de. A posse da liberdade nas ações cíveis de escravos e libertos na justiça em São Paulo, Século XVIII. Outros Tempos: Pesquisa em Foco - História, [S.L.], v. 19, n. 33, p. 288-318, 31 jan. 2022. Universidade Estadual do Maranhão. http://dx.doi.org/10.18817/ot.v19i33.917.
Petição negada de Tomé de Gouveia e Sá Queiroga ao rei D. João V, solicitando confirmação de licença para “levantar” engenho de aguardente e melado
A postagem da vez da nossa série "Resgatando Histórias: letra por letra" apresenta o caso de uma petição negada de Tomé de Gouveia Sá e Queiroga. O suplicante escreve ao rei D. João V em 1736 pedindo confirmação de licença para “levantar” (construir) um engenho de aguardente e melados, utiliza-se de uma retórica que alude aos seus bons feitos realizados na capitania do Mato Grosso na tentativa de convencer o monarca. Mas a resposta, além de demorar cerca de dois anos (1738), não é a esperada: Tomé de Gouveia Sá e Queiroga tem seu pedido recusado. A resposta real é implacável pois D. João V não apenas nega a licença como afirma que, no caso que já tenha sido construído o engenho, o mesmo deve ser demolido. O motivo para a negativa régia seria uma expectativa que a área fosse destinada a outros usos? Teria ele informações do negócio para não confirmar licença? Seria esse o motivo pela demora da resposta? Será que era desejado que todos se dedicassem somente à extração do ouro para não desviar os escravos para outra atividade? Ter engenhos na época era um privilégio de poucos, além de exigir uma considerável inversão de capital.
Leia abaixo a transcrição da petição:
f.1:
Sr.o
Diz Tomé de Gouveia e Sá Queiroga, assistente nas minas de Vila Real de Bom Jesus de Cuiabá onde assiste que ele tem servido a Vossa Majestade nas ocupações que consta da certidão junta, nas quais tem feito grande serviço a Vossa Majestade de como também ser ele suplicante o motor do descobrimento do novo sítios de Mato Grosso do Sertão dos Paracizes, onde se espera haver umas minas continuadas de grande rendimento e pela sua boa inteligência, zelo e verdade o prover o governador na ocupação de Provedor da Fazenda da Real o qual exercitou com muito zelo do real serviço e por ser muito consciente haver naquele sítios novamente descoberto do Mato Grosso um engenho em que se possa fabricar águas ardentes e melados para se acudir com elas. E por não haver nem um naqueles sítios recorreu ao governador Conde de Sarzedas para lhe dar licença para poder levantar o dito engenho que com efeito do governador lhe concedeu como consta da cópia da certidão junta a qual de a a Vossa Majestade lhe faça graça confirmar, portanto
Pede a Vossa Majestade que lhe faça mercê em atenção ao referido, mandar ao suplicante se lhe passe carta de confirmação da licença lhe deu o dito Governador para poder levantar engenho de aguardente e melado no novo sítio do Mato Grosso tudo a custa do suplicante .
ERM
Alto:21 de janeiro de 1736
f.5:
Resposta de Dom João V
Dom João V por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves da quem e do além mar em África porvir de guiné. Faço saber a vós Ouvidor Geral da Comarca do Cuiabá que se viu e que respondestes em carta de 20 de julho do ano passado a ordem q. vos foi para informares sobre o requerimento que me fez Tomé de Gouveia Sá e Queiroga em que me pedia fosse servido confirmaste a licença que o Conde de Sarzedas Governador que foi da capitania de São Paulo e concedeu para levantar um engenho de águas ardente e melados no novo descobrimento do Mato Grosso descrito dessa comarca e sendo nesta matéria ouvido o Procurador de minha Fazenda. Me pareceu a dizer vos que se escusou este requerimento e assim vos ordeno que no caso de haver erguido engenho os mandeis demolir, não consintas se estabeleça engenhos de novo. Eu Rey Nosso Senhor mandou pelos Desembargadores José Ignacio de Aroche, Tomé Gomes e (?) conselheiros do seu conselho vossa majestade, e se passe por duas vias, Antonio de Souza Pereira a fez em Lisboa a cópia a 17 de outubro de 1738.
Petição de Diogo José Pereira solicitando alvará para seu livramento da prisão
O caso da vez da nossa série "Resgatando Histórias: letra por letra" apresenta a petição de Diogo José Pereira ao rei D. João V, solicitando alvará para ser solto do calabouço de uma fortaleza na vila de Santos. Diogo justifica no requerimento que sua culpa já fora comprovada como falsa por sua defesa, e que ele continua preso apenas por perseguição do governador de São Paulo que se intrometera em seu processo. Diogo menciona ainda que os comandantes da prisão o humilham e envergonham, e que devido ao estado do calabouço ele adoecera, o que está comprovado por certidões do médico e cirurgião do presídio. Tendo seus bens confiscados desde 1745, apela à piedade do rei dizendo encontrar-se “pobre e doente”, retórica que era comum utilizar-se à época. Junto ao requerimento, encontram-se duas anotações com parecer positivo, do provedor da Fazenda e do Conselho Ultramarino, reconhecendo que seus bens estavam realmente confiscados. Nesse caso, é possível analisar algumas questões que despertam curiosidade ao leitor, por exemplo: qual teria sido o motivo da prisão de Diogo? Qual o motivo da perseguição pelo governador? Quais eram os meios pelos quais as pessoas poderiam denunciar supostas injustiças? O fato é que queixas contra autoridades como essa eram comuns nos requerimentos enviados às autoridades, e podiam ser muito úteis para entendermos as formas de mobilização da sociedade colonial.
Leia abaixo a transcrição da petição:
fl. 1
S.or
Diz Diogo Jozé Pereira prezo no calabouço da Fortaleza da Barra da Vila de Santos pela culpa que lhe rezultou na devaça que o Intendente e Provedor da Fazenda Real do Goyas em observância das ordens de Vossa Majestade com [ilegível] em aberto contra os [ilegível] bons da proibiças dos diamantes que expedindo o dito [ilegível] da precatória para effeito do suplicante ser prezo [ilegível] em seu cumprimento azsim se procedeo sendo logo tão bem o suplicante notificado para se mandar livrar por seu procurador da referida culpa o que executando lhe defferio o dito provedor da fazenda recorresse a Vossa Majestade a quem tinha dado conta porque não tinha ordens para o caso, como tudo o suplicante fez presente (?) a Vossa Majestade para que ordenasse ao dito mencionado admitisse o livramento de cujo requerimento o supplicante ignora a rezulta pela omisão e mã correspondência (?) de seus procuradores: mas quase se [pre]cede que ainda que Vossa Majestade se dignasse de deferir lhe se lhe retardarã sempre o seu recurso pello grande empenho e eficacia que o Governador e cappitão General daquella cappitania tem mostrado em oprimir e vexar ao supplicante movido do grande zello de servir a vossa majestade porque foy o que o mandou prender sem embaraço devida precatória (?) e ajustando (?) ordens punitivas e dispotiças aos comandantes da dita Fortaleza para oprimirem ao suplicante e publicando não hade ser solto daquella prizão. Sem expressa ordem de Vossa majestade firmada pella sua real mão, como hé notório; patentiando mais o seu animo, em que havendo o supplicante estado gravemente enfermo / como ao presente se acha/ e procurando com sertidons do medico e cirurgião do prezidio. In de baixo
fl. 2
De bayxo de fiéis carcereiros (ilegível) a Vila de Santos se lhe denegou: Porque a culpa do supplicante he falça, como mostrara na sua defeza / (ilegível) maquinada por emulos (?) a resolução porque Vossa Majestade a manda punir não determina penas corporaes e o supplicante se acha com os seus seus bens confiscados prezo desde termo de mil setecentos e quarenta e cinco pobre e doente recorre a grandeza e piedade de Vossa Magestade para que se digne com se dar lhe alvarã de fieis carcereiros para poder curar-se e tratar do seu livramento. E assim
Para Vossa Magestade se digne por sua real clemência em atenção ao expendido conceder lhe alvará para ser solto sob fiéis carcereiros para poder tratar de seu livramento curasse das molestias que tem adquirido no áspero e rigorozo daquella prizão. ordenando juntamente ao dito governador contenha o seu zello não se intrometendo por conta de lhe no que dis respeito à pessoa e livramento do supplicante.
[parte superior] Vista e (ilegível) da defaça a qualidade da forma deste delito me parece que estando como se alega de quitando os bens do suplicante não há (ilegivel) em que sua magestade lhe defira proceder (ilegivel) a graça de fiéis carcereiros por tempo de hum ano [parte superior] Ao conselho parece o mesmo do provedor da Fazenda. Lisboa 24 de abril de 1748.
Uma petição de confirmação de sesmaria, atendida em parte
A postagem da vez da nossa série "Resgatando Histórias: letra por letra" apresenta o caso de uma petição dos oficiais da câmara da Vila de São João Del-Rei que foi enviada ao rei Dom José I pelo governador de Minas Gerais, Gomes Freire de Andrade. Os requerentes pedem a confirmação das 2 léguas de sesmaria que foram concedidas pelo governador Dom Brás Baltasar da Silveira no ano de 1714. Esse pedido de confirmação só foi feito 40 anos depois da concessão da sesmaria. A ordem real é a concessão de meia légua de terra e que caso houver moradores, aqueles que tiverem títulos da propriedade não precisarão pagar foro à câmara, enquanto aqueles que não o tiverem terão de pagar um foro moderado.
Leia abaixo a transcrição:
fl. 1
Para o Conde de Bobadela
Dom José etc faço saber a vós conde de bobadela e capitão general da capitania do Rio de Janeiro com o governo das Minas Gerais que se veio a vossa carta de 12 de outubro de 1758 em resposta da ordem em que se vos expediu para informares no requerimento que me fizeram os oficiais da câmara da vila de São João Del-Rei para que eu lhes confirmasse as duas léguas de terra de sesmaria que no ano de 1714 lhe concedeu o governador Dom Brás Baltasar da Silveira sobre o que me insinuareis que para complemento da ordem mandarei se informasse o governador interino das Minas Gerais o que fizera o intendente da mesma comarca e me expunhei que a conscessão que a câmara pede-lhe fundada na sesmaria concedida pelo dito governador Dom Bras Baltasar da Silveira havia quarenta e quatro anos e que concedida essa mesma se seguirão alguma violências e pleitos, e assim a tudo vos confirmará com o que apontava na sua informação a do intendente que remeteis e sendo tudo visto e o que nesse particular responderam os procuradores da mesma fazenda e coroa. Me pareceu dizer vos que vista a vossa informação e a do intendente concedais a esta câmara meia legua de terra em quadra fazendo pião?? naquela parte que a câmara vos pedir com declaração que os moradores que tiverem casas ou propriedades no distrito da meia légua que concederes serão conservados na posse que se acharem e tendo alguns títulos para possuirem não pagarão foro algum à câmara e os que se acharem sem título para a sua posse pagarão o foro moderado que em câmara se ajustar e serão obrigados os oficiais da câmara atirar? confirmação desta sesmaria. El Rei Nosso Senhor ordenou pelos conselheiros do conselho ultramarino abaixo assinados e se passou por duas vias: Manuel Antonio da Rocha 22 de junho de 1760, o secretário João Miguel// Taveres// Souto Maior.
Uma petição de emancipação (suplementação de idade) feminina concedida pelo rei
Estamos de volta com a nossa série "Resgatando Histórias: letra por letra". Dessa vez apresentando o caso de Anna Maria de Jesus, da vila de Vila Rica em Minas Gerais, que solicitava sua emancipação (suplemento de idade) para administrar os bens de seu pai. Como órfã, ela era obrigada a ter um tutor para administrar a fortuna a que teria direito. E ela assim consegue! Se as mulheres eram vistas como subalternizadas nessa sociedade, como pensar sua ação social?
Leia abaixo a transcrição:
f.1 Snr,
Diz Anna Mª de Jezuz filha legitima de Joze de Pugar Valadares, e de sua mulher Antonieta Luiza de Souza, asistente na comarca de vila Rica termo da cidade de Marianna, que por falecimento de seu pai se fez inventário pelo Juízo de Órfãos da mesma cidade e em legítima razão da suplicante ser menor, e como se acha com idade de vinte três annos com Juízo e capais de para governar seus bens o que tudo se mostra do instrumento junto razão porque vossa Magestade lhe deve mandar passar carta de suplemento de idade para poder governar e administrar para o que.
Pede a Vossa Magestade se digne mandar passar a suplicante carta de suplemento
de idade na forma que pede
E.R.M.
[alto] P. Provizão de Suplemento de idade. Lisboa em Mayo 20 de 1760.
A queixa da câmara de Santos, contra os cadáveres de baleias deixados no litoral
No episódio de hoje da nossa série “Resgatando Histórias: Letra por Letra”, exploramos um intrigante caso de 1750 envolvendo vereadores, contratadores e administradores da pesca da baleia. Na vila de Santos, os vereadores informaram ao rei D. João V que Tomé Gomes Moreira, contratador da pesca da baleia, estava retirando as barbas das baleias e deixando os cadáveres na praia. O fato levou o juiz de fora a propor uma postura proibindo essa prática incômoda à saúde da vila. Contudo, a proibição não foi cumprida e, em 1748, Moreira ordenou que seu administrador, Albano de Souza, continuasse a pesca, resultando na morte de 20 baleias, cujos corpos foram deixados novamente na praia. Isso levou à prisão do administrador e à revolta de Moreira. Qual teria sido o desfecho para o administrador preso? Essa prática foi finalmente interrompida?
Leia abaixo a transcrição da queixa:
fl. 01
Senhor
Expomos a V. Mag, que servindo nos abayxo assigandos de vereadores na camara desta Vila de Santos nos anos de 1747 e 1748, em ambos estes anos mandou Thomé Gomes Moreira contactados, que entam era do real contracto das pescas das baleias, fazer a sua pesca nos ditos peyxes nas barras da Bertioga, e Santo Amaro destricto desta Vila para lhes tirar a barba tam somente, e depois de mortas ficavam os seus cadaveres encortadas a praya em que faziam hua extraordinaria fedentina. Por occasião deste facto o Juiz de Fora desta Vila o Bacharel Joam Vieyra de Andrade, presidente da camara, propos nela que se devia fazer hua postura, em que se prohibisse aos administradores do dito contracto encostare a praya as baleas mortas, ou se obrigasse a desfazella em azeyte, ou levallas ao largo, co pena de quatro mil cruzados de condegnação e trinta dias de cadeia, e repugnando o vereador mais velho no ano de 1727 Manoel de Motta Ribeiro abayxo asignado, na dita postura, e duvidando asignalla por ser contra o real contracto de vossa magestade, o dito Juiz de Fora com imperio lhe disse asignasse que elle o livraria, e com efeito sepoz a dita postura, que nos assignamos amedrontados do dito Juiz de Fora que ja no mesmo ano de 1747 nos tinha em camara mandar citar para hum auto, pelo esdvivam(?) da camero e tabeliam, que entam era Francisco Xavier Paes, como elle depora, por duvidarmos nomear lhevinte e tantos quadrilheyros, que nunca houve em todo este Brasil: maz ainda, que naquele anno se fez a postura não se executou por ser no fim da pesca.
No anno seguinte de 1748 mandando o mesmo contractador continuar a pesca nas ditas barras pelo seo adminstrador Albano de Souza e Azevedo, ate pelo que o dito administrador tinha ja morto vinte e tantas balleas as quaes tinha tirado somente as barbas deyxando os cadaveres encostador as praias propoz segunda vez em camara o dito Juiz de Fora, que devia ser notificado o dito administrador pela referida postura, executada nelle, e mandou lavrar hum mandado |em sua casa| para esse effeito pelo escrivan da camara seo tabeliam, o qual levou a casa delles vereadores ja assignado pelo Juiz de Fora, os quais co medo, e receo das violencias do dito ministro o asignaram. Por bem do dito mandado, foy notificado o dito administrador Albano de Souzo; paralo em parecer em camara, e vindo a Vila, foi fallar ao Juiz de Fora, que logo de seo moto proprio, sem que o Procurador da Camara nem os vereadores lhe requeressem, o mandou prender, e o retteve na prizão perto de dous annos
Aggravou o preso para o Ouvidor da Comarca, teve duas senteças de desaggravos para ser solto, que não quiz comprir o dito Juiz de Fora, e recorrendo o mesmo prezo a mesa do Paço da Bahia, obteve provisão para ser solto dirigida ao Ouvidor de São Paulo, que mandou soltar.
Da prizam deste administrador em que não tivemos parte nem votto, nem concurso algum nasceo hua grande queixa no contractador, aquela tem ja provisão de Vossa Majestade, passada pela mesa do Paço da Bahia para nos obrigar para perdas, e damnos consideraveis, e de facto, já estarcamos citados para a acção, se com medo do dito Juiz de Fora se não suspendesse a citação, por não haver official que queira fazerlla co receo de que elle prenda como ameado.
fl. 02
E como depois de acabar o dito ministro, seremos citador e demandados, e ainda que justifiquemos a nossa inocencia, e a sua violencia, (como havemos de justificar) he ja a(?), que o dito ministro, se auzenta desta Vila, ficando nos responsáveis pelo mal, que elle obrou: E não he rasão, que os ministros de Vossa Magestade enfanem os povos, e os venham a perder, quando elles para homens de letras devem saber o que obram, e o que podem e não nos que somos huns homens leigos ignorantes de direito, e nos ficamos nos que elle nos dizesm e sevia em justiça grande, e contra a piedoza intenção de Vossa Magestade, ir este ministro que nos enganou e extorquir a vontade livre para sua casa, e ficarmos nos mullidos no jugo sem remedio.
He este ministro senhor, tam violento, e precipitado, que nam cumpre as sentenças dos superiores, como fez não só ao dito Albano de Souza, mas tambem a Antonio Moniz, que tendo duas sentenças para ser solto (?) não quer cumprir e o conserva prezo a dous annos, tem allem disso autuado o trez homens desta Vila, e hm delles preso, natural (?), violento e descompoem os homens que co receo das suas absulutas para ficarem longe os recursos, convem em tudo quanto elle quer.
Por estas rasoens, postos aos reaes pez de Vossa Magestade |fora da camare, por não podermos nella| expomos a Vossa Magestade todos estes factos, para que VM, como rey, e senhor se digne mandar juntar esta a residencia do dito ministro e achando se que he verdade oq expomos ordenas ao sindicante o segure na pessoa ou lhe faça dar fiança ou caução idonca aos prejuizos que tivermos ou que pedir o dito contratador, para que elle senão retire e nos fiquemos vexados.
Vila de Santos 13 de Março de 1750.
A fuga da "índia carijó" Francisca e uma petição para recuperá-la
A postagem da vez da nossa série "Resgatando Histórias: letra por letra" apresenta o caso de uma petição de Mariana Roza de Abreu, moradora da vila da Lágrima, Capitania de São Paulo, com data anterior à 1735. Na petição, a suplicante (Mariana) relata que uma “índia carijó”, administrada por ela, teria fugido, sob influência de outros indivíduos - que não são especificados. A autora da petição deseja recuperar a administração da “carijó” e para isso utiliza-se do argumento de que é uma mulher pobre, sem ter quem a acompanhe, além de alegar ter oferecido criação, educação e doutrina (cristã) para Francisca. Ademais, argumenta que a administrada fujona estaria “andando quase vagabunda” pela vila.
É interessante notar que a fuga da “carijó” Francisca, pode se caracterizar como uma maneira de resistência indígena contra a administração, uma vez que esses atos eram bastante comuns no período. Ainda, segundo Mariana, a indígena Francisca dizia que “por ser india podia estar aqui, ou ali”. Ou seja, a administrada de Mariana utilizava sua condição de indígena como argumento para sua liberdade.
O requerimento de Mariana é aprovado em março de 1735, com a condição de que a suplicante faça um termo de fiança, garantindo que reporia a índia em algum aldeamento, caso fosse solicitada. Como o termo de fiança acompanha a petição, tudo indica que Mariana conseguiu reaver a administração da “carijó”.
Leia abaixo a transcrição da queixa:
fl. 01
[lateral do documento] Dando fiança e fazendo termo por que se obrigue a repô-la nas Aldeias de Sua Magestade quando lhe for mandado se lhe deferirá São Paulo 26 de março de 1735.
Excelentíssimo Senhor
Diz Mariana Roza de Abreu moradora na villa da Lágrima que ella teve em sua companhia huma carijó oriunda do gentio da terra chamada Francisca a quem lhe deu o insino, e boa doutrina, educando-a como se fora sua filha, e depois induzida por alguns saiu da companhia da suplicante, dizendo que por ser india podia estar aqui, ou ali, e por isso anda quase vagabunda por aquela vila, e por que a suplicante he huma molher pobre, e não tem quem a acompanhe, quer tella em sua companhia por ser a quem deve todo o ser, e criação, para cujo efeito oferece fiança de a repor todas as vezes que for pedida, por Vossa Excelência, ou qualquer ordem de Sua Magestade.
Pede a Vossa Excelência, se digne mandar, que dando fiança na forma que asim diz, o Capitam Mor daquella villa da Laguna faca logo entregar a referida carijó Francisca a suplicante, e a tratara com todo {mimo} e brandura conforme Sua Magestade quer.
E.R.Mce.
Honra e adultério: o caso do pedido de recolhimento de Maria Francisca na vila de Nazaré
A postagem da vez da nossa série "Resgatando Histórias: letra por letra" apresenta o caso de uma petiçãoNa Bahia do século XVIII, havia grande incidência de requerimentos aos governadores e, em última instância, para o Rei. Esses, eram corriqueiros em casos de manutenção da vida conjugal. Foi desta forma que o capitão Francisco da Silva de Andrade requestou o recolhimento de sua esposa por suposto concubinato. No ano de 1723, Francisco teria descoberto o adultério entre sua mulher Maria Francisca dos Santos e seu cunhado o Alferes José Francisco Sampaio. Sentindo-se desonrado, pede para que a mesma seja enviada ao recolhimento de São Raimundo, na Bahia, para se evitar maiores escândalos com processos criminais. A partir deste caso, podemos perceber as dinâmicas das instituições em relação às mulheres na sociedade baiana da época.
Esse post foi realizado pela/os estudantes Maria Eduarda Souza Silva, Pedro Luís Cruz Rodrigues e Tamiris Silva do Carmo na disciplina de História do Brasil I (2024) na UNIFESP.
Leia abaixo a transcrição da queixa:
fl. 01
Ill.mo e Ex.mo S.or
Diz o Cap.m Francisco da S.a de Andra.e que sendo casado na forma do sagrado Concilio Tridentino com M.a Fran.ca dos S.tos vivendo a ela [ilegível] e conjugal, [ilegível] [ilegível] em a povoação de Nazaré, “tal da vossa” [ilegível] onde ele é maior, erqutado por via das principais [ilegível] não só por ser de boa qualidade, mas [ilegível] a sua casa via da mais abastardas que ali existem; e tratando ela sempre com toda grandeza, aceio, e afeta a dita sua mulher a maltratar em coisa alguma , nem lidar o menor desgosto ; sucede, que casando ele a sua filha, “havida” do mesmo matrimonio com o alfezes Jozé Francisco Sampaio, também morador na sobredita povoação, este esquecendo-se das leis divinas, humanas, abandonando todo temor a Deus, “epizando” “incosiderado” todos os direitos os mais sagrados, e ainda os pugentes, e Santos estímulos da razão da honra da decência do decoro e da gravidade entro a solicitar a referida sua sogra mulher do suplicante, para ter com ele [ilegível] amizade e com efeito a força das suas repetidas, indiscretas, importunas [ilegível], conseguiu, que ela “condescendesse” [ilegível] depravados, e “luceferinos” intentos, e vivem a muito tempo em publico e escandaloso concubinato, que nesta matricula já não há dúvida alguma, todos naquela povoação sabem, o mesmo reverendo [ilegível] está certificado da infidelidade do suplicantes como ele o declara no atestamento junta; sendo o mesmo suplicante o último que veio ... dela; porque este caso é um dos mais graves, pela sua [ilegível] pelas consequências e pela suas terríveis consequências, e o suplicante não quer usar de meio judicial nem de acusações criminais, que façam mais pública a sua infâmia, ao mesmo passo que quer separar os dois concubinários e por modo menos estrondoso punir a gravidade desse delito, cheio da mesma profunda humildade recorre e
PAVEx.a sedigne compadecesse dele mandando, que a dita sua mulher seja recolhida ao Recolhimento de São Raimundo
O escravo Marçal reconhece sua culpa diante da Mesa da visitação no Grão-Pará?
No episódio de hoje da nossa série, apresentamos o caso do escravo Marçal, morador do Engenho de Varapiranga (Pará), que confessou sua culpa por práticas mágicas durante a Visita Inquisitorial no Grão-Pará (1763-1769).
A visita tinha como objetivo incentivar os fiéis a confessar seus pecados, além de que fossem denunciados crimes contra a religião. Esse processo era conduzido em um ambiente social construído por missas e éditos de fé.
No dia 13/10/1763, Marçal confessou diretamente à Mesa de visitação que realizara um feitiço aprendido com uma índia, dizendo que "esta lhe veio a ensinar umas palavras que tinham virtude para adivinhar as pessoas que tinham furtado alguma coisa sem se saber" (do Amaral Lapa, José Roberto. Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará (1763-1769). Vol. 1. Vozes, 1978, p. 55).
Ao confessar-se, sua atitude pode ser comparada à prática de alguns peticionários da época: diante da possibilidade de que alguém pudesse ser delatado ou incriminado, a pessoa agia de forma defensiva, seja denunciando outrem, seja reconhecendo ou justificando uma situação controversa. Esse ato visava à sua proteção contra uma possível denúncia ou até à redução de possíveis punições, já que, em um ambiente da sociedade colonial com a presença de agentes inquisitoriais, muitas portas e janelas poderiam ter olhos e ouvidos.
Este post foi realizado pelos estudantes Beatriz Frasseto de Matos, Elsio de Melo Neto e Giovanna Domingues Borges, na disciplina de História do Brasil I (2024) da UNIFESP.
Leia abaixo a transcrição da queixa:
Aos treze dias do mês de Outubro de mil setecentos e sessenta e três anos na cidade do Pará e Hospício de São Boaventura, onde está a Mesa da Visita, estando nela o Senhor Inquisidor Giraldo José de Abranches, Visitador do Estado por parte do Santo Ofício, mandou vir perante si a um preto que da sala pediu audiência e, sendo presente por dizer, a pedira para confessar culpas que tem cometido, pertencentes ao conhecimento do Santo Ofício. Lhe foi dado o juramento dos Santos Evangelhos em que pôs sua mão sob cargo do qual lhe foi mandado dizer verdade e ter segredo, o que tudo prometeu cumprir. E logo disse chamar-se Marçal Criolo, natural de Caxeo, solteiro, escravo do Chantre desta Catedral, Antonio Francisco de Polstzis, assistente no seu Engenho de Varapiranga. Tem ofício de pedreiro, quarenta anos de idade, pouco mais ou menos.
Foi admoestado que pois tomava tão bom conselho como o de se apresentar nesta Mesa das culpas que tem cometido, lhe convém muito trazê-las todas a memória para fazer delas uma inteira e verdadeira confissão, e se lhe faz a saber que está obrigado a declará-las todas miudamente com suas circunstâncias agravantes sem as encarecer, nem desculpar, porque o dizer a verdade pura e inteiramente, sem levantar a si nem a outrem testemunho falso, é o que lhe convém para descargo de sua consciência, salvação de sua alma e seu bom despacho: ao que respondeu que só a verdade queria dizer, a qual era que havia doze anos, pouco mais ou menos, andando ele (confitente) com outras pessoas mais extraindo madeiras para o Engenho do dito seu senhor no Rio de Guajará, ali encontrou uma Índia Quitéria (solteira, já defunta, da administração dos religiosos de Nossa Senhora do Carmo desta cidade que assistia na Fazenda do Livramento) a qual naquele tempo andava fugida e refugiada naqueles matos do dito rio: e entre conversas que ambos tiveram estando sós ele confitente e a dita a Índia Quitéria, esta lhe veio a ensinar umas palavras que tinham virtude para adivinhar as pessoas que tinham furtado alguma coisa sem se saber, e que não continham coisa má porque falavam em Santos, porém que as havia de dizer tendo cravado os bicos de uma tesoura no arco de um balaio e sustentando este por uma parte com o dedo por um anel da mesma tesoura e outra pessoa da outra parte fazendo o mesmo, e que estando nesta forma com o balaio no ar dissesse as ditas palavras, que são as seguintes: “Por São Pedro e São Paulo, passou pela porta de Santiago, São Pedro e São Paulo.” E que as havia de dizer dentro do coração, sem se perceberem de fora, e que tanto que se nomeasse a pessoa que tivesse feito o furto, logo o balaio havia de dar volta e cair no chão, sem lhe poderem ter mão; e que se nunca se nomeasse a pessoa que fizeram o furto, nunca o balaio daria volta. E que com efeito tomando ele, confitente, de memória as ditas palavras e forma de pôr o balaio que lhe ensinou a dita Índia, praticara este ensino por cinco vezes no dito Engenho, pregando a tesoura pela dita forma no balaio e sustentando no ar pelos anéis dela, ele confitente de uma parte e outra pessoa da outra, e dizendo anteriormente as ditas palavras e viu ele confitente que só uma vez se não descobriu quem tinha feito o furto e por isso não deu volta a tesoura. Porém que das quatro sempre aparecera e dera volta o balaio e caíra, e só se lembra que uma vez por este meio se descobriu quem tinha furtado cinco patacas a um velho mulato feitor que foi, e ainda assiste, no mesmo Engenho; e que outra vez se manifestou quem tinha furtado duas varas de pano de algodão que tinha Gregória, preta criada, filha do preto Marçal, ferreiro, e de sua mulher, Luzia. E que estas eram as suas culpas, que somente conheceu depois que se leram os editais pelas Igrejas desta cidade e se publicou esta Visita, e de ter caído nelas está muito arrependido: pede perdão e que com ele se use de Misericórdia e mais não disse. Foi lhe dito que tomou um bom conselho em se apresentar voluntariamente nesta Mesa e confessar nela suas culpas, e que lhe convém trazer elas todas a memória e declarar inteiramente a verdade delas e a verdadeira intenção com que cometeu as que têm confessado, porque fazendo assim desencarregará a sua consciência e merecerá a Misericórdia que a Santa Madre Igreja só costuma conceder aos bons e verdadeiros confitentes; e por tornar a dizer que não era de mais lembrado, foi outra vez admoestado em forma e mandado para fora e que se não ausente dessa cidade sem expressa licença desta Mesa. A sala da qual virá todos os dias não feriados, das sete até às onze horas da manhã, até se findar a sua casa, o que ele prometeu cumprir sob cargo do Juramento dos Santos Evangelhos que lhe foi dado.
E sendo-lhe lida esta sua confissão, por ele ouvida e entendida, disse que estava escrita na verdade como ele a tinha feito e assinou como o Senhor Inquisidor Visitador, o Padre Ignacio José Pastana Notário da Visita o escreve.
O escravo Marçal reconhece sua culpa diante da Mesa da visitação no Grão-Pará?
Hoje, na série "Resgatando Histórias: letra por letra", analisaremos o caso de Josepha e José da Cruz Carvalho, que enviaram um pedido ao rei D. João V a provisão para nomeação de testamenteiro para cuidar da herança do padre Manuel da Cruz de Carvalho, seu irmão e tio. O documento revela que o padre Manuel faleceu nas terras de Carlos Marinho, na região dos Guyazes, no atual estado de Goiás. Nele, são listadas as posses e bens que compõem a herança, a qual os parentes solicitam acesso. Por que precisariam estabelecer comunicação com o rei para acessar a herança do padre Manuel? O fato de seu falecimento ter ocorrido nas terras de Carlos Marinho alterava os direitos dos herdeiros?
Leia abaixo a transcrição:
{fl.1}
Dizem Josepha de Carvalho e Jose da Cruz de Carvalho como legitimo administrador de sua filha e familiar Maria Teresa, Josepha do lugar de travessa do termo e bispado da cidade de Coimbra da freguesia de Vila Seca, Irmão, e sobrinha do Padre Manoel da Cruz de Carvalho, natural da mesma freguesia, e falecendo o dito seu irmão e tio nas minas de S. Felix chamada de Carlos Marinho pertença dos Guyazes, fazendo ser testemunha nele o (ilegível) suplicante por seus herdeiros, e nomeia por ser testamenteiro os alferes João Antonio da Fonseca, o qual além de se achar farto de bens, e naquelas partes poderoso, e se meteo na posse do dito testamento, consta de grossa importância, afim de divididos, como de fazendas; de sorte e sua sociedade e tinha nas Minas Gerais de S. Lucia do Saberá com Matheos Rossi de Almeida, tinha o defunto metido dez mil cruzados; porque para melhor se cumprir a vontade do testador e os suplicantes poderem cobrar do que lhe pertence da dita herança só se pode conseguir concedendo lhe a majestade provisão para o regente superintendente dos Guyazes obrigar ao sobredito testamenteiro a fazer entrega de todos os bens da dita herança ao procurador dos suplicantes, sem embargo de quaisquer duvidas que ali se ponha, e que não o fazendo, seja prezo, até com efeito fazer a dita entrega atendendo também, o que por não haver naquelas partes ministros de letras, não satisfazem os testamentados as contas dos defuntos, utilizando-se dos bens das testamentarias.
Para V. Majestade se digne conceder-lhe a dita provisão na forma referida.
ERM.